quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

'Na vida, observa-se facilmente a diferença de comportamento segundo o tipo de situação.
Sendo o contexto carregado de informações, em particular emocionais, o sobredotado não chega a canalizar a sua atenção. Ele se coloca em modo <vigia> e não permite entrar em seu cérebro a não ser o mínimo de informações vitais... Nestes momentos, tem-se a impressão que ele não escuta, que ele não está lá. Por vezes prejudicial para ele e muito provocante para o meio. Ele está em modo econômico! Então, para se fazer entender, será preciso repetir um grande número de vezes!
O sobredotado funciona em tudo ou em nada. Mas, para ele, o tudo, é frequentemente demais.
Não é verdadeiramente escutar, não é verdadeiramente refletir com uma economia de energia cerebral. Um sobredotado pode verdadeiramente dar a impressão de ser idiota a tal ponto, ele pode às vezes reagir, tomar decisões, de maneira irrefletida. O mais frequente: em modo vigia, ele responde, toma uma decisão superficial ou pior, de lado. Donde vêm numerosos erros e conflitos inextricáveis. muito difícil efetivamente compreender e aceitar que este ser inteligente e sensível teria podido agir, intervir, de forma tão inadaptada. Não se pode chegar a o crer. Frequentemente o sobredotado procurará vos persuadir que ele não o fez de propósito, que ele não pensou nas consequências, que ele não havia bem compreendido e, tão surpreendente e desconcertante que isto possa parecer, é verdade! O que o pode conduzir a impasses de comunicação: o outro não pode entender uma inverossimilhança igual e insiste. Então o sobredotado, no fim de argumentos justificáveis, deixa o <combate>. Ele se fecha, não diz mais nada, foge. Ele não sabe mais o que é preciso dizer e prefere se subtrair à confrontação por impotência de afrontar. Ele não tem argumentos válidos, ele o sabe, mas o outro não pode admitir.
As crises, os conflitos, as reclamações sem fim, as punições, as reprimendas, segundo a disposição de cada um dos protagonistas, serão as consequências desse <desfuncionamento> ativado bem involuntariamente pelo sobredotado, ele mesmo infeliz de tanta incompreensão recíproca.
Vê-se como esse funcionamento pode ser compreendido como de insolência, de impertinência ou de provocação.
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No sobredotado, todas a informações são captadas nas redes de neurônios que circulam e se repartem em várias partes do cérebro. As conexões não são localizadas numa zona cerebral distinta (o que se observa atualmente com as localizações funcionais). De mais, o tratamento é simultâneo, o que significa que tudo é tratado ao mesmo tempo e no mesmo nível de importância. O número de neurônios tocados é reduzido de velocidade. Eles têm efetivamente... a cabeça cheia!
Este 'trio automático' não se aciona no cérebro do sobredotado que se reencontra em face de uma multidão de informações que se deve tratar 'manualmente'. Fala-se em déficit de inibição latente. O que supõe um esforço singular para se 'colocar' dentro de sua cabeça e determinar quais são os dados a privilegiar. Compreende-se bem a dificuldade que encontra o sobredotado quando ele deve organizar e estruturar seu pensamento. E quanto resta a capturar com todas as emoções e sensações associadas.
O estilo <independente do campo> permite descontextualizar facilmente e de ser mais eficaz na ativação das capacidades intelectuais. O espaço é desobstruído para desencadear o recurso necessário à resolução de um problema dado. Ele é associado às personalidades independentes, pouco influenciáveis e que chegam a colocar de lado o afetivo quando é necessário. Elas sabem fazer <parte das coisas>.
Nada disso tudo para os <dependentes do campo>, que são rapidamente afogados em tudo o que os cercam e que não chegam a extrair o essencial (ou o que parece sê-lo). Os sobredotados, é claro, são estes aqui!
Particularmente perdidos na abundância da sua percepção das coisas, o sobredotado não opera a diferenciação necessária a um tratamento rápido e eficaz dos dados. Mais ainda, sua dependência do contexto é amplificada pela dimensão afetiva.
Um sobredotado é sempre dependente do contexto afetivo, ele não sabe, ele não pode funcionar sem levar em conta a dimensão e a carga emocional presentes.'
O desafio: selecionar a informação pertinente.
Nessa ativação cerebral permanente e acelerada, como chegar a reparar a informação principal? Como distinguir o dado pertinente para resolver o problema ali, naquele momento? Tudo vai muito rápido e tudo aparece no cérebro ao mesmo tempo. Quando se tenta agarrar uma ideia, ela está já muito longe e outras centenas surgiram. Como, enfim, liberar-se da carga emocional que se ativa no mesmo ritmo que os neurônios e que provoca o pensamento em zonas ainda mais longínguas?' (Siaud-Facchin)

domingo, 9 de dezembro de 2018

Superdotação e Currículo (parte I)
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Quando nos perguntamos sobre o currículo mais adequando a educação de alunos superdotados, estamos coadunados com o princípio da educação qualitativamente diferenciada, ou seja, atender as necessidades, estilos, ritmos e potenciais de cada aluno. Devemos perceber que tal princípio está amplamente imerso nos valores defendidos pelos direitos humanos, que contemplam tratamentos diferenciados às pessoas com vistas à garantia da equidade dos direitos.
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O Brasil ainda precisa avançar muito em termos práticos na perspectiva de uma educação mais isonômica, especialmente no que tange a educação dos alto habilidosos e mesmo que aqui não existe um modelo de ensino-aprendizagem formalmente instituído, podemos elencar princípios coletados dos melhores modelos educacionais do mundo, por exemplo, em 1982 Passow e equipe sugeriram algumas orientações basilares que podemos citar e discutir (in Sodré, 2006, p.91):
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1) Conteúdo que explore diferentes sistemas de pensamento.
 “O conteúdo dos currículos para superdotados deve ser organizado para incluir o estudo mais elaborado, complexo e profundo de ideias, problemas e temas que integrem o conhecimento de diferentes sistemas de pensamento” (in Sodré, 2006, p. 91).
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Comentários.
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Já discutimos que os superdotados têm sede por conhecimentos e buscam níveis de profundidades muito maiores nos assuntos que estudam quando comparados que a maioria das pessoas. Dessa forma, a condição de enfado ou desinteresse diante de aulas cujas temáticas ou detalhismos sejam rasos serão sentidas pelos mais talentosos. Imagine se você fosse obrigado a ouvir novamente uma mesma lição que já domina completamente, que tivesse de ficar sentado ouvindo e escrevendo em níveis de pensamento e conhecimentos aquém do seu potencial? Para quem está na infância e adolescência, momento em que sua função executiva de autocontrole ainda está imatura ou em desenvolvimento, seria um tormento, ao mesmo tempo que um convite a transgressão, delinquência ou fuga da sala de aula.
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Quando Passow propõe a integração de diferentes sistemas de pensamento, está desafiando não apenas a cognição do sujeito em uma área de domínio, mas projetando também a articulação de diversos módulos de inteligência ou capacidades, o que representa uma multiplicidade de desafios. Por exemplo, o reconhecidíssimo sistema de ensino Finlandês, no ano de 2016, inicia uma forma ainda mais arrojada de tratamento dos conteúdos, pois agora não estarão condicionados a disciplinas específicas, mas orbitarão em torno da solução de problemas ou temas de estudo. Em outras palavras, estimularão os alunos a pensarem de maneira inter ou transdisciplinar, por exemplo, se os alunos forem estudar algo sobre a “Idade Média”,  farão abordando as diversas facetas do tema, por exemplo, os castelos serão visto do ponto de vista arquitetônico e as influências culturais, bem como estrutura física para guerras/conflitos, serão entendidas das relações matemáticas que envolvem sua estrutura; observados os impactos para biologia das pessoas que lá habitavam, analisados os componentes geológicos e químicos que os compunham, dentre outras abordagens que poderiam ser feitas segundos os níveis, limites e possibilidades de cada segmente escolar. Portanto, estudar a partir dos múltiplos  fenômenos que compõem uma realidade de maneira integrativa ou transdisciplinar é realmente uma proposta bastante desafiadora e perfaz uma aprendizagem bastante assentada na experiência e na mobilização de múltiplos recursos cognitivos (phenomenon learning).
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Para saber um pouco mais sobre as mudanças no modelo finlandês, lei a matéria:
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www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151206_finlandia_educacao_muda_fn
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2) Níveis de pensamento mais elevados.
“O currículo deve facilitar o desenvolvimento e a aplicação de habilidades de pensamento produtivo, para permitir que os alunos reconceitualizem o conhecimento existente ou criem conhecimento novo” (in Sodré, 2006, p. 91)
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Comentários.
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Os níveis de pensamento criativo e crítico dos alto habilidosos são mais elevados e precisam ser sempre estimulados e bem empregados. Todos os especialista do campo ratificam que o potencial criador deve ser aproveitado, canalizado e expandido ainda mais com atividades que sejam desafiadoras e imbuídas de propósito maior, especialmente de cunho ético. A aprendizagem baseada problemas ou projetos, bem como o modelo de enriquecimento escolar renzulliano  são amplamente indicados nessa perspectiva e permitem ao mesmo tempo, explorar novos assuntos, treinar habilidades cognitivas e sociais e buscar a solução de problemas reais.
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A estimulação do pensamento produtivo compreende a expansão do pensamento divergente, a capacidade criadora pela busca de novas soluções para os mesmos problemas que afligem a sociedade, independente da natureza dos mesmos.
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Essa é uma necessidade crucial nos tempos líquidos, em que o panorama civilizatório se tornou muito complexo e diversificado, com níveis e tipos de problemas com um amplo espectro de dificuldade e alcance, por exemplo, os desafios para conservação ambiental, os dilemas éticos hodiernos, os enfrentamentos de ordem sociais (corrupção, violência, desigualdades sociais...), dentre outros.
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3) Currículo em sintonia com os desafios hodiernos.
“O currículo deve facilitar a exploração do conhecimento em perpétua mutação e o desenvolvimento da atitude de apreciação de busca de conhecimento em mundo aberto” (in Sodré, 2006, p. 91).
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Comentários.
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Essa perspectiva curricular está bem concertada com a noção de currículo capaz de preparar os cidadãos para lidarem com o que Bauman relata serem: as incertezas diariamente fabricada; as ambiguidades da vida; a capacidade de viver em paz e com a diversidade; a competência em processar o “novo” e todas as alegrias, dúvidas, angustias ou medos com ele trazidos.
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Sabemos que o mundo como hoje se desvela nos atravessa com múltiplos desafios, sejam esses congnitivos (precisamos aprender mais e em menos tempo, bem como saber usar tais conhecimentos adequadamente), sociais (precisamos enfrentar a imbricada teia social, compreendendo e respondendo adequadamente as causas e consequências dos problemas), éticos (precisamos compreender em um nível de pensamento “para além do senso comum” as questões éticas, respondendo corretamente o que queremos, o que podemos e o que devemos fazer em cada situação dilemática).
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Os indivíduos superdotados, quando bem educados e não apenas bem instruídos, pois instrução é muito menos que educação! Estarão melhor preparados para mobilizar os seus talentos, sempre investidos de propósito ético, para resolução dos problemas reais que se renovam ou se repaginam de tempos em tempos. Portanto, um currículo que encare a mutabilidade do conhecimento, que se desevencilhe do engessamento, da alienação e da fragmentação é essencial para educação de todos, com destaque aqui, para a dos alto habilidosos.
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Igor Paim
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Continuaremos na próxima postagem.
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Críticas? Dúvidas? Sugestões?
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Envie para educacaodesuperdotados@gmail.com
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Bibliografia
PASSOW, A.H. Differentiated curricula for the gifted/talented. Ventura: National/State Leadership. Training Institute on the Gifted and Talented. 1982.
SODRÉ, S.G. Educação de Superdotados: Teoria e prática. São Paulo: EPU. 2006.
SODRE, S.G. Superdotação e currículo In: Altas Habilidades/superdotação, inteligência e criatividade: Uma visão multidisciplinar. Campinas, SP: Papirus 2014.
WINNER, E. Crianças sobredotadas. Portugal: Instituto Piaget, 1996.